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Companheiros de Pensamentos

domingo, 11 de julho de 2010

Memórias geram memórias - 2

Ainda fazendo referência ao belo texto escrito por Carlos Albuquerque, sobre as Memórias de Luanda, e continuando a ir ao meu baú de saudades, relembro o marido da Ana. Não me lembro ao certo mas acho que primeiro tivemos contacto com o Castelo e depois com a Ana. Sei que só passado um tempo é que soubemos que eram casados.
“Aqueles homens altos de músculos desenhados, salpicados por gotículas de mar, que ali estão, são pescadores.”
Castelo era pescador e vivia numa comunidade de pescadores (pequena aldeia) na praia, perto da nossa residência.
Assim que chegava do mar, começava logo a percorrer as casas, para vender o produto de seu trabalho.
Tínhamos mudado para aquele local, recentemente e, aos poucos, meus pais e eu íamos aprendendo os costumes da terra.
Castelo visitou as cinco casas, antes da nossa, apregoando e vendendo o seu peixe fresquinho, acabado de sair do mar.
Chegou à nossa casa. Minha mãe foi ver o peixe que restava, escolheu o que queria e perguntou o preço.
O pescador disse o preço, bem além do que se pagaria numa peixaria (era o costume pois as senhoras regateavam e o pescador ia baixando o preço até chegar ao preço real). Minha mãe não reclamou, não regateou, não pechinchou, apenas pagou, exactamente, o que ele pediu.
Castelo já se preparava para seguir seu caminho quando minha mãe perguntou-lhe o nome e disse-lhe:
- Sr. Castelo, eu sou assim, não gosto de regatear, não sei pechinchar, nunca vai ouvir-me a reclamar do preço. Sempre pagarei o preço que o senhor achar que o peixe merece. Boas vendas e até à próxima. Sabe, a minha filha adora peixe, portanto, sempre vou querer peixe. Tenha um bom dia.
(E minha mãe era mesmo assim.)
A partir daquele dia, quando o Castelo regressava da pesca, passava pelas cinco casas, sem parar em nenhuma, mesmo sendo chamado pelas donas-de-casa, e a elas respondia: - Primeiro, a MÃE!
Primeiro ia à nossa casa para que a minha mãe fosse a primeira a escolher o peixe que quisesse.
Muitas vezes minha mãe não concordava com o preço do peixe. Achava que valia mais do que ele pedia. Mas não reclamava. Pagava o que Castelo pedia. Mas depois, quando ele já se preparava para seguir seu caminho, entregava-lhe o restante dinheiro para completar o valor que achava ser o merecido, dizendo: - Sr. Castelo, está calor, tome umas cervejinhas!
Também houve muitas vezes em que o Castelo, antes de ir embora, tirava lá do fundo um saquinho com peixes miudinhos e, entregando à minha mãe, dizia: - MÃE, para a “menina”.
Meu pai sempre foi um amante do saber. Mas não só o saber que se encontra nos livros. Era um amante do saber do homem do campo, do homem do mar.
Meu pai gostava de pescar, apesar de nunca trazer o peixe para casa (ele tirava o anzol da boca do peixe, com cuidado, e eu devolvia-o ao mar.)
Ao saber da aldeia perto de casa, um dia foi visitá-la. Foi se chegando devagarinho, com respeito. Foi sendo aceito, devagarinho.
Gostava de observá-los a arranjar o peixe para secar.
Não havia longas conservas mas havia grandes lições de vida.
A confiança ia crescendo.
Meu pai começou a ser chamado de “O MAIS VELHO”.
Um dia, encheu-se de coragem e desatou a fazer perguntas:
- Por que me chamam de “MAIS VELHO”? Eu sou mais novo que todos vocês.
E o Castelo respondia, simplesmente: - Ora; és “O MAIS VELHO”!
Meu pai insistia:
- E por que chamam a minha mulher de “MÃE”? Todas as minhas vizinhas também são mães e vocês chamam-nas de “DONA”.
O Castelo olhava e, simplesmente, respondia: - Então, “MAIS VELHO”; ela é a “MÃE”; pronto.
Então, meu pai desistia, apenas aceitava e respeitava os seus silêncios…

6 comentários:

Cães e Focinhos disse...

oi amiga que prazer em receber sua visita pode voltar sempre,adorooooooo mil beijos

Unknown disse...

uma história contada com muita ternura.
Gostei muito.
Certas recordações serão as nossas fieis amigas.

Fê blue bird disse...

Que linda história, que maravilha...fiquei deliciada visualizei o Sr Castelo, a Mãe e o Velho como se estivesse também a fazer parte deste cenário.
Parabéns!
Boa semana

beijinhos

Paulo Vicente disse...

Obrigado pelas tuas visitas no outro dia. :)

Tantas histórias de infância, se tivesse algumas tão boas escrevia aqui, mas só tenho recordações "comuns", por isso quando chegar a velho vou ter de encher a cabeça dos jovens com a "fantástica" história de como sintonizava a tv a preto e branco...

Será que eles vão acreditar em mim quando contar que tinha de abrir uma agenda de papel e fazer girar um disco para telefonar?

Susana disse...

Muito legal o seu texto! A maneira como você descreve é muito fluente.
Adorei!!!
Bjs.

Carlos Albuquerque disse...

É bem verdade, Ana Paula, memórias geram memórias, particularmente em quem teve vivências semelhantes. As nossas, de África, são inapagáveis e, a cada passo, transformam-se em vivas correias de transmissão.
A Mãe e o Mais Velho( A Dona e o Kota)!
Quantas vezes, minha mulher e eu, ouvimos tal, dito com carinho, ternura e amizade!
Adorei ler esta história do pescador Castelo. Os peixinhos pequeninos que ele trazia para a menina despertaram-me memórias de que falarei, um dia destes, no meu blogue.
Muito obrigado pela gentil referência que me fez.
Abraço